por Tatiane Grova Prado - membro EBP/AMP
Estão comendo o mundo pelas beiradas Roendo tudo, quase não sobra nada Respirei fundo achando que ainda começava Um grito no escuro, um encontro sem hora marcada
[...]
Um sonho dentro de um sonho E eu ainda nem sei se acordei Desse sonho quero imagem e som Pra saber o que foi que aconteceu
Hoje de manhã eu acordei sem imagem e sem som
[...]
“Um sonho”
Nação Zumbi
Nós, da diretoria do ICP, pensamos em aproveitar essa ocasião[1] para deixar vocês mais familiarizados com as nossas XXVI Jornadas Clínicas do ICP-RJ, que são o evento anual que demonstra e faz desembocar o trabalho da nossa comunidade e articula a EBP-Rio e o ICP-RJ.
Para comentar essa fala de um dos nossos convidados das Jornadas, Alejandro Reinoso (NEL/AMP) , me apoio nessa letra do Nação Zumbi, escrita também a partir do trauma da perda do seu vocalista e criador de um movimento que revitalizou a cena musical no Recife (eleita a quarta pior cidade do mundo para se viver, segundo estudo da ONU na época), assim como a do Nordeste, e que se alastrou pelo Brasil, o mangue beat.
Essa música, “Um sonho”, é de 2014. A morte de Chico Science foi em 1997. O clipe traz fotos de Chico Science com Jorge Du Peixe (vocalista atual da banda e componente dela nos anos 90), além de ter seus filhos, que formam ou formavam um casal, como protagonistas. Fiquei me perguntando o que motivou a presença da reminiscência de Chico Science no clipe, 17 anos depois da sua morte. Fazendo um primeiro link com a fala de Alejandro: por que continuar sonhando com Chico Science?
Essa música parece dizer sobre a resistência de deixar um personagem já fora da cena cotidiana, ir embora, sumir da cena. A música diz do sonho com ressonâncias com o que pensamos sobre sua função para a psicanálise: um encontro sem hora marcada. Alejandro fala do mestre do capitalismo tardio, que exige a transparência, tudo com hora marcada, bem planejada, e sem mistério. Classificações bem delimitadas, que pretendem recobrir tudo. Então, esse encontro sem hora marcada ganha um certo lugar – nessa situação da história do Nação Zumbi, bem delimitado, lugar do trauma, da morte de um jovem talentosíssimo e promissor.
O clipe traz os filhos dos parceiros de banda testemunhando a causa em jogo. Frente ao trauma, houve, entre tantas coisas, a produção de um clipe onírico, produzindo imagem e som onde não havia mais nada. Vamos tomar a função do sonho por aí, como produção do inconsciente em seus dois sentidos: produção vinda do inconsciente e, ao mesmo tempo, produzindo-o hoje no mundo. Um lugar para uma mancha na profunda transparência, e é dessa mancha que vem uma produção que não serve para nada: a arte, a música, o que faz falhar, o que não responde ao empuxo ao lucro.
Alejandro nos fala que o sonho traz uma escansão do ordinário da nossa vida, uma estranheza que acompanha, como uma característica, aquilo que cada um de nós deixou de fora de sua realidade, para constituí-la. Esse clipe-sonho traz a música, causada pela presença e o legado do Chico Science, onde só havia morte traumática. Nesse sentido, a surpresa que o sonho traz, para a psicanálise, não tem a ver com uma clareza, com a transparência, mas sim dá lugar a uma opacidade criadora, um corte no adormecimento cotidiano, um corte com a imagem e com o som rotineiros.
Há um testemunho na música do Nação Zumbi: “Desse sonho quero imagem e som pra saber o que foi que aconteceu”. O que estamos tomando como um certo despertar que o sonho traz tem a ver com essa parte: o que aconteceu está mais inscrito no sonho do que na realidade, o sonho dá mais conta e traz notícias mais vivas de como alguém viveu algo do que a realidade cotidiana.
Lacan mesmo nos indica, no seu último ensino, que nunca acordamos totalmente dessa realidade objetiva, funcional, que nos deixa mais longe do que estou chamando de opacidade criadora, do nosso inconsciente e de nossos sintomas como aquilo que abocanha uma verdade do nosso ser e da nossa vida psíquica. Mas, uma análise propõe, convida alguém para ficar mais perto dessas imagens e sons dos sonhos para saber o que aconteceu, nisso que Freud denomina como Outra cena, articulada à cena cotidiana e que a relê.
As articulações da cena do sonho e da realidade; os cortes e releituras que os sonhos podem propor; as palavras que eles trazem e que mordem um real mais real do que a realidade, que nomeiam algo inédito que, quando aparece, reconfigura o mundo de alguém: é disso que trataremos nas nossas Jornadas.
Se o mestre contemporâneo está comendo o mundo pelas beiradas, temos a oferecer, com a psicanálise, pelas beiradas, pelos detalhes, pelo que se escreve dos encontros sem hora marcada, um modo único de estar no mundo, para cada um.
[1] Fala apresentada na ocasião da aula inaugural do segundo semestre do Instituto de Clínica Psicanalítica do Rio de Janeiro, dia 07 de agosto de 2019.
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