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ARGUMENTO

A VIDA (NÃO) É UM SONHO: REAL E SURPRESA NA PSICANÁLISE

É verdade, pois: reprimamos

esta fera condição,

esta fúria, esta ambição,

se alguma vez sonhamos.

E se o fizermos, pois estamos

em um mundo tão singular,

que o viver só é sonhar;

e a experiência me ensina,

que o homem que vive,
sonha o que é, até despertar.

Aqui, no campo do sonho, estás em casa.
Wo es war, soll ich werden.

A escolha do tema do sonho para as XXVI Jornadas da Escola Brasileira de Psicanálise Seção Rio de Janeiro (EBP-Rio) e do Instituto de Clínica Psicanalítica do ICP (ICP-RJ) se articula ao trabalho que as Escolas da Associação Mundial de Psicanálise vêm fazendo em direção ao XII Congresso da AMP, cujo tema é: O sonho: sua interpretação e seu uso no tratamento lacaniano.

A perspectiva que nos pareceu interessante para convidar nossa comunidade ao trabalho diz respeito, especialmente, à importância do sonho na clínica psicanalítica hoje. Ainda se crê que um sonho porta mensagens cifradas? E nós, analistas, somos ainda convocados a decifrá-las? O sonho mantém-se como a via régia do inconsciente – posição na qual Freud o colocou a partir do passo inaugural da psicanálise, com a publicação da Interpretação dos Sonhos? Como se dá o trabalho do sonho e com o sonho na psicanálise atual? Haveria uma função especial dos sonhos no final das análises? Estas e muitas outras questões se nos impuseram.

Partindo das continuidades e descontinuidades entre as concepções de Freud e Lacan quanto à função dos sonhos nas análises, optamos por enfatizar a relação dos sonhos com a surpresa e o real.

Nosso título, A vida (não) é um sonho: real e surpresa na psicanálise, ancora-se na discussão estabelecida por Lacan, no Seminário 11, quando, numa referência ao título da obra de Calderón de La Barca, La vida es sueño, discute a importância do real que se apresenta envelopado pelo sonho. Nesse sentido, Lacan distingue o caráter puramente ficcional da vida, apontando para esse núcleo de real que vemos apresentado em Freud pela noção de “umbigo do sonho”.

Uma das premissas do pensamento psicanalítico é a de que a relação do homem com a realidade material é inteiramente perpassada por sua realidade psíquica, por suas fantasias e desejos. A realidade não é tomada pela psicanálise como é pelo mestre contemporâneo, ou seja, uma realidade que se pode esquadrinhar, elucidar, sem manchas, transparente.

Grosso modo, dizemos que o humano se movimenta no mundo de modo alucinado. Sua busca de satisfação não corresponde a uma ordem natural. Não há objetos predeterminados para suas urgências e a demanda, assim, se distingue da necessidade. Todos os objetos são construídos em relações precoces, em que algumas representações e traços se associaram a satisfações contingentes.

Nesse sentido, poder-se-ia pensar que a vida do homem é um sonho.

Lacan, entretanto, toma o título da obra de Calderón de La Barca para estabelecer as distinções entre sonho e real. A obra de La Barca, de 1635, trata da saga do príncipe Segismundo – coincidentemente, o mesmo nome de Freud – que vive cativo em uma torre, por desígnio de seu pai, para evitar que produzisse desgraças ao reino, conforme vaticinado pelos astros quando de seu nascimento. Trata-se de uma obra literária do século XVII, que mantém fortes referências à filosofia platônica do mito da caverna, além de inscrever-se no escopo dos temas da Contrarreforma, com suas discussões sobre a oposição entre real e ficcional, e, especialmente, sobre o tema do livre arbítrio.

No Seminário 11 a perspectiva que Lacan ressalta é a de que há um real para além do sonho e das fantasias.

“O real, é para além do sonho que temos que procurá-lo, no que o sonho revestiu, envelopou, nos escondeu, por trás da falta de representação, da qual lá só existe um lugar-tenente. Lá está o real que comanda, mais do que qualquer outra coisa, nossas atividades, e é a psicanálise que o designa para nós”. (Lacan, 1985a, p. 61).

Um real que é singular, não universalizável, e é relativo ao modo como a linguagem despertou cada corpo, produzindo ali um gozo. O encontro desta experiência advém na análise como acontecimento contingente, como surpresa. Se o real é o que não cessa de não se escrever, como dirá seis anos mais tarde em seu Seminário 20,  não significa, no entanto, que ele não insista por trás de toda produção simbólica, e mesmo imaginária. Nesse sentido, sua presença tem sempre o caráter de surpresa.

Outras perguntas surgem quando pensamos a relação da psicanálise atual frente ao mestre de nossos tempos. Por um lado, o discurso do mestre tende a querer nos embalar no sonho de uma realidade em que há saberes prévios para tudo, num reino da transparência sem obscuridade. Qual, então, será a função do sonho – que, em Freud é o guardião do sono, e nos manteria adormecidos quanto ao real – quando na atualidade há a irrupção de violências inimagináveis, perpetradas em nome das mais variadas questões de poder (religioso, político, financeiro e etc.)? Ainda sonhamos para mantermos certa ignorância sobre nossos desejos? Seja sobre nossos desejos singulares, seja sobre os desejos relativos à nossa condição de cidadãos?

Enfim, temos muitas questões. E todas elas incidem de modo direto em nossa prática analítica, tanto no âmbito privado quanto no público, nas redes de saúde mental, nos hospitais, nas escolas e universidades e onde mais o analista possa estar. Nossa questão central parece ser então: como nos servimos do relato do sonho na psicanálise que se pratica nos mais diversos espaços clínicos? E em que esta prática serve aos sujeitos hoje?

Assim, convidamos a todos para apresentarem suas elaborações sobre o tema. Bom trabalho!

Tatiane Grova

Coordenadora Geral

Marcia Zucchi

Coordenadora Epistêmica

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