por Ondina Machado - membro EBP/AMP
Em outras palavras, skias, onar anthropos, Sonho de uma sombra, o homem. É por meu sonho, é por me deslocar no campo do sonho na medida em que ele é o campo da errância do significante que posso entrever a possibilidade de dissipar os efeitos de sombra, e saber que ela não passa de uma sombra. Decerto, existe alguma coisa que posso ainda por muito tempo não saber, é que eu sonho. Mas, já no nível e no campo do sonho, se sei bem interrogá-lo e articulá-lo, não somente triunfo da sombra, mas tenho um primeiro acesso à ideia de que há mais real do que a sombra que há, em primeiro lugar e no mínimo, o real do desejo, do qual essa sombra me separa. (LACAN, 1961)[1]
No Seminário 8, Lacan cita a clássica jaculatória de Píndaro – "Sonho de uma sombra, o homem." – para nos transmitir quanto do sonho é sombra, mas também real. Voltemos um pouco ao que Lacan indica nos parágrafos anteriores ao da citação.
Eles tratam da diferença entre eu ideal e ideal do eu como níveis distintos da identificação. Lacan vai se valer do esquema do vaso invertido para mostrar que a imagem real depende do campo do Outro, do espelho do Outro e, desse modo apontar para a incidência do significante na imagem que se tem de si. A introdução do Outro, portanto, da linguagem, cria uma espécie de distopia que não permite que o sujeito se identifique a si mesmo.
Entre o sujeito e o objeto há uma zona de sombra na qual se introduz o significante. A sombra, então, é uma opacidade essencial na relação do sujeito com o objeto fazendo com que a identificação narcísica possa ser superada pela via do significante.
Nesse contexto, ao citar a jaculatória de Píndaro – "sonho de uma sombra, o homem" –, Lacan demonstra que a errância do significante pode "entrever a possibilidade de dissipar os efeitos de sombra, e saber que ela não passa de uma sombra"[2]. O máximo que se obtém de saber com essa errância, é que se sonha. Porém, ele detecta que o fato de saber que se sonha é o primeiro acesso "à ideia de que há mais real do que sombra, que há, em primeiro lugar e no mínimo, o real do desejo, do qual essa sombra me separa"[3].
O sonho, na perspectiva freudiana, separa o homem da realidade; ao despertar ele 'acorda' para essa realidade. A perspectiva que Lacan apresenta, nesse momento de seu ensino, é que "o desejo é um desejo de sonho, que o desejo tem a mesma estrutura que o sonho"[4]. Assim sendo, o despertar vem pela verdade que a experiência analítica revela, que há algo mais forte que a sombra.
Essa questão se coloca novamente para Lacan no Seminário 22, quando isola o imaginário, o simbólico e o real como 3 consistências distintas que não se encadeiam[5]. Se os três registros não formam uma cadeia, como se dá o efeito de sentido?
Se eles se encadeassem, o sentido viria do simbólico, da articulação do S1 com o S2, ou mesmo do imaginário significantizado. Lacan, nesse seminário, quer saber como um efeito de sentido pode tocar o real, ou seja, como pode se dar um efeito de sentido sem a concorrência da articulação significante. No Seminário 24 Lacan vai, mais uma vez, recorrer à jaculação e a questão do real. Desta feita, não mais pela via do desejo do qual a sombra nos separa, mas que o fato de saber que se sonha parece apontar o limite que o real impõe à significação. Ao constatar esse limite – o que não se encadeia -, ele vai buscar um efeito de sentido para além das palavras, um efeito de sentido real.
Para Lacan todo discurso adormece, a não ser quando não é compreendido[6]. Até mesmo a poesia pode adormecer. Assim, toda fala dá sono, mas, no caso da poesia, ela é também uma escrita, tem métrica, tem ritmo, tem letras e tem o sentido fugidio. Nela concorrem as duas dimensões do significante: a que aparece na fala pelo registro da voz e a que aparece na escrita pela letra. A fala está na língua, a letra em lalíngua. O discurso que desperta, que não é de semblante, é aquele que mesmo diante das duas dimensões do significante deixa um resto, um precipitado não compreendido que instaura um vazio de significação porque é feito de lalíngua.
Lacan fará uso da jaculação para denominar esse modo de produzir efeito de sentido real que usa a palavra sem que dela se extraia nenhum sentido, ou melhor, que o possível sentido se evapora no mesmo momento em que é apreendido. Ele pensou em um significante "que não teria, como o real, nenhuma espécie de sentido"[7].
Na jaculação temos uma ruptura da métrica que tem como efeito o despertar. Tomando-a como um significante isolado, podemos antever que ao contornar o vazio de significação ela cria um furo. Pelo furo poderá estabelecer um laço distinto com o gozo, um laço singular. Por ser um significante fora da cadeia, ele pode ser eficaz para tratar o gozo, tocando-o sem a pretensão de eliminá-lo, mas permitindo que dele se extraia uma satisfação. Seria um significante novo ou uma maneira nova de usar o significante para veicular gozo. A jaculação, então, seria uma maneira de usar o significante de forma a destacar o gozo, recortar um gozo parcial, e assim liberá-lo.
[1] LACAN, J. O Seminário, livro 8: a transferência. RJ: Jorge Zahar Ed., 1992[1961], p. 363.
[2] Ibid.
[3] Ibid.
[4] Ibid, p. 363-364.
[5] LACAN, J. O Seminário, livro 22: RSI. Aula de 11 de fevereiro de 1075. Inédito.
[6] Ibid. LACAN, J. O Seminário, livro 24: L'insu que sait de l'une-bévue s'aile à mourre. Aula 19 de abril de 1977. Inédito.
[7] Ibid. Aula de 17 de maio de 1977.
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