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O talmude do sonho

Atualizado: 21 de nov. de 2019

por Ana Tereza Groisman - membro EBP/AMP

"Em A Interpretação dos Sonhos há algo de um Talmude do sonho, porque não, como há um Talmude do lapsus em A psicopatologia da vida cotidiana. O espírito de que se trata aqui se chama Witz [chiste], e é uma forma de espírito que não se eleva ao alto, mas que está essencialmente articulado à letra".[1]

O convite a comentar essa instigante frase de Miller levou-me a buscar uma aproximação entre a interpretação do sonho e o Talmude. O Talmude promove uma passagem da transmissão oral das leis judaicas (rabínicas) para um registro escrito, com suas diversas interpretações. A beleza desse documento histórico se destaca pela forma como foi sendo construído, já que cada interpretação é acrescida sem que a anterior seja invalidada. Leituras de diferentes épocas são preservadas, formando em cada passagem um mosaico de escritos que convida a inúmeras formas de entendimentos, nas quais as leis são interpretadas e reinterpretadas em seus mínimos detalhes, ao longo dos séculos.


O sonho Talmude

O sonho e as formações do inconsciente parecem seguir um formato análogo à construção do Talmude, um verdadeiro campo arqueológico da escrita, onde temos acesso a várias camadas interpretativas, sobrepostas e dispostas de forma visível, chegando até mesmo a interpretações opostas que não se invalidam. Na leitura dos sonhos em análise, passamos do simples relato à decomposição de seus elementos, fazendo emergir o detalhe que não se dobra facilmente à interpretação: seu caroço de real, o umbigo impossível de apreender pelas vias da palavra, mas que faz girar em seu entorno o aparelho significante.


O sonho é o sonhador

Os sonhos acompanham as análises e interpretam o sonhador. Muitas vezes percebemos a surpresa do paciente ao constatar que ‘esse sonho fala por si!’. O sonho é o sonhador, sua estrutura dá acesso ao material recalcado e expõe a relação singular que o sujeito estabelece com sua alteridade íntima. Algumas vezes, ao relatar o sonho, o sonhador se reconhece no texto, o que tem um efeito de chiste, faz rir, pois é certeiro ao colocar em cena aquilo que se supunha estar escondido. Ele produz uma narrativa que pelas vias da livre associação não se chegaria tão facilmente. Porém, é no relato do sonho que se escreve em análise que vimos surgir seus elementos dispersos e dissonantes que, por vezes, interrompem a narrativa: algo escapa à compreensão, as imagens oníricas não se traduzem inteiramente em palavras, o que possibilita a emergência de um objeto heterogêneo ao sujeito.


O sonho em si já diz ao sonhador algo novo sobre ele mesmo, mas seu relato em análise faz surgir algo mais, que conta com a narrativa e com a escuta do analista. Podemos supor que, assim como no Talmude, só temos acesso a transcrição de um sonho que já conta com os desvios da interpretação do sonhador.


Tanto em “A interpretação dos sonhos” quanto em “A psicopatologia da vida cotidiana” Freud franqueia o caminho que levará Lacan a formular o inconsciente estruturado como linguagem. Como nos lembra Freud, “o sonho faz um uso irrestrito de símbolos linguageiros, cujo significado o sonhador não conhece.”[2]


O sonho acorda o sonhador

O relato oral já conta com a deformação promovida pelo Eu, mas não invalida seu lugar de via régia para o inconsciente. Se atentarmos para os detalhes, faremos soprar o espírito do sonho, não um espírito elevado, como nos lembra Miller, mas seu caroço de Real, seu umbigo, aquilo que ao mesmo tempo promove infindáveis possibilidades interpretativas e impede que possa ser definitivamente interpretado.


No trabalho que fazemos com o sonho, a princípio poderíamos supor um movimento próximo ao do Talmude, onde primeiro teríamos acesso a interpretação do sonho, fruto do inconsciente transferencial para daí nos orientarmos em direção ao detalhe que aponta para o inconsciente real que pode ser lido, mas resiste à interpretação.



Carmen Pinart. 1989



[1] Miller, J. –A. Los divinos detalles. Buenos Aires. Paidós, 2011. P.13


[2] Freud, S. Compêndio de psicanálise. Belo Horizonte. Autêntica, 2017. P. 69

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