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A psicanálise e o sonho

Atualizado: 9 de jul. de 2019

por Mirta Zbrun - membro EBP/AMP



"Descent into Limbo", de Anish Kapoor. Havana, 2016.


“Um mundo feito de tempo, do absoluto tempo dos “Principia”; um labirinto infatigável, um caos, um sonho. A essa quase perfeita desagregação chegou David Hume."

“O mundo, desgraçadamente, é real, eu, desgraçadamente, sou Borges.”

Jorge Luís Borges[1]


O tema proposto para estas Jornadas, A vida real (não) é um sonho: surpresa e real na psicanálise nos faz evocar Lacan[2] na sua referência celebre à Ética de Espinoza, onde ele diz que: “o desejo é a essência mesma do homem”[3].O que nos leva a pensar em uma ética da psicanálise que tem como ponto de partida o real, na medida em que trata do desejo como cifra do real. A ética espinoziana, que postula o desejo como essência do homem, define-se como uma ética que faz o laço entre a fantasia e a pulsão, condição da posterior instância do gozo e do sinthoma no ensino de Lacan. O desejo como “desejo do desejo”, está aberto ao corte, a saber, ao ser puro, representado no matema A/, o Significante da falta do Outro. Porém, mais além do desejo, o que se comprova no sonho, a relação do falasser/parlêtre com seu ser é a relação com lalíngua, com o real, com o gozo do sinthoma, com o objeto. E o tempo real do sonho supõe um além do sonho como “realização do desejo”, um tempo onde o desejo aparece como um ciframento que necessita de deciframento. As interpretações que se depreendem da Traumdeutung freudiana, e que visam o real, vão da ontologia da falta-a-ser, ao Um como furo, como ausência de ser, como vazio[4]. Estão referidas ao axioma lacaniano “todo mundo delira”, ou “sonha o tempo todo”.


Desse modo, como o faz Miller, em seu curso “Todo el mundo es loco”, convém delimitar o âmbito de cada uma das noções das quais se utiliza a Psicanálise, para abordar o tempo real do sonho, como fantasia ou fantasma, delírio, alucinação[5]. O sonho assim pode ser vivido como realidade, ao introduzir o sonhador num tempo onde não mais se pensa como falta-a-ser senão como furo. Lugar da “coisa”, o Das ding freudiano no qual o princípio do terceiro excluído é anulado. Logo, quem sonha? Sonha-se ou se é sonhado?


Ao pesquisar este tema tão importante para a psicanálise, encontramos na obra de Jorge Luís Borges incidência teórica (sob cor ficcional) relevante para o nosso pensar. Poucas vezes, aliás, encontramos na literatura universal melhor exemplo de “perplexidade metafísica” atenta à indócil questão de penetrar o “instável mundo mental”. O que nos é dado ler no admirável relato de Borges, extraído do livro “Otras Inquisiciones,” e intitulado “Nueva Refutación del Tiempo”. O relato é antecedido de nota preliminar que apresenta ao leitor os dois textos que o compõem. Neles o autor busca fundamentar com a força de um “ilusório axioma” uma refutação do tempo, que o seu autoexame propõe como chave explicativa de toda sua obra literária. Ao interpelar os filósofos Berkeley e Hume, ele verifica que, se para o primeiro, “o tempo é a sucessão de ideias que flui uniformemente e da qual todos os seres participam”, para o segundo, o tempo é “uma sucessão de momentos indivisíveis”. Na sequência dos dois metafísicos ingleses, ele, Borges, busca refutar o tempo, negar o eu, e encenar uma temporalidade sem limites, onde a realidade se confunde com um tempo real. Negada a matéria, o espírito e o espaço, por que reter o tempo? O tempo não existe fora de cada instante presente para o poeta. Assim, escolheu Borges, para fundamentar seu axioma, que visa provar que o tempo não tem existência fora do instante presente: “o sonho de Zhouang Zi”.


Na China antiga, o filósofo Zhouang Zi sonhou que era uma borboleta, e que ao despertar não sabia mais se era um homem que havia sonhado ser uma borboleta ou uma borboleta que sonhava ser um homem. Este conto filosófico parece demonstrar que a igualdade das coisas impõe real redução ontológica. Consideremos, pois, o momento do sonho: nunca saberemos se viu a imagem que só existe no sonho, e se vivenciou a certeza de ser uma borboleta fora do sonho. Houve um sonho e um sonhador. Para o idealismo se pode indagar: em que lugar no tempo? Se para o idealismo filosófico não existe matéria (Berkeley), nem consciência (Hume), não existe, consequentemente, o tempo (Borges). E o sonho do filósofo mostra-nos que se para a aparência ordinária há diferença entre as coisas, na ficção, como no sonho, há “transformação das coisas”, e que a sua diferença não é absoluta.


De volta a Borges, podemos inferir que todo esse ensaio de ‘refutação do tempo’ expõe a questão essencial que o absorve: “Antes de mim não havia tempo, depois de mim não haverá nenhum”. Para sua agônica conclusão podemos dizer que no despertar do sonho de existir o falasser/parlêtre se encontra com um real do qual ele foge, do qual nada gostaria de saber; trata-se de um tempo cujo único limite é o despertar. O poeta conclui: “o mundo desgraçadamente é real, e eu desgraçadamente sou Borges”. Então, e só então, Borges encontra seu destino de escritor na fala de Angelus Silesius: “Amigo, já basta. Se quiser ler mais, vai e faze de ti mesmo a escrita, e de ti mesmo o Ser”.


Referências Bibliográficas:

FREUD, S. A Interpretação dos Sonhos, Ed. Standard Brasileira, Volume IV, Rio de Janeiro: Imago, 1996.

___________Los dos princípios del suceder psíquico. Biblioteca Nueva Madrid, 1966.

LACAN, J. O seminário livro 6:O desejo e sua interpretação(1958-195). Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2016.

BORGES, Jorge Luis. Obras completas. Buenos Aires, Emecé Editores, 1974.

SPINOZA, B. Ética. Edições de Ouro. Coleção Universidade. Rio de Janeiro, 1979.

[1] Jorge Luís Borges, poeta e romancista argentino (1899-1986). Obras completas. Buenos Aires, Emecé Editores, 1974, pp.761-770.

[2] Lacan, J. O seminário livro 6, O desejo e sua interpretação. Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2016, p.16.

[3] Spinoza, B. Ética: Quarta Parte, Da Servidão Humana ou da Força das Paixões. Proposição XVIII. Edições de Ouro. Rio de Janeiro1979, p 239.

[4] Miller, J. - A. Curso de Orientação lacaniana. O Ser e o Um. Inédito: lição de 11 de maio de 2011, tradução ao português de Vera Avelar Ribeiro.

[5]Miller, J. - A. Curso de Orientação lacaniana. Todo el mundo es loco. Paidós, Buenos Aires. Pp. 341-342. Aula de 11 de junho de 2008.

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