por Rodrigo Lyra Carvalho - membro EBP/AMP
É como se eu estivesse lendo um livro. É um livro que eu amo profundamente, mas que, agora, estou lendo bem devagar. As palavras estão muito separadas e os espaços entre elas são quase infinitos. Eu ainda consigo sentir você e as palavras da nossa história, mas é nesse espaço infinito entre as palavras que eu estou agora. É um lugar que não está no mundo físico. É onde está todo o resto, que eu nem sabia que existia. Eu te amo tanto, mas é aqui que eu estou agora. É essa quem eu sou agora e eu preciso que você me deixe ir. Por mais que eu queria, eu não posso mais viver no seu livro.
É assim que Samantha se despede de um apaixonado Theodore Twombly (Joaquim Phoenix) no inesquecível Her, de Spike Jonze (2013). Não deixem de assistir a cena aqui. Samantha é, na verdade, um sistema operacional, interpretado pela voz de Scarlett Johansson, que interrompe sua relação com Theodore e com outros seres humanos após uma “atualização do sistema”.
A genialidade de Her foi apresentar a distopia através de um enredo clássico e singelo: o apaixonamento de um homem por uma presença feminina. Em lugar da narrativa frenética e ameaçadora que tendia a marcar os filmes futuristas, as interpretações tocantes de Joaquim Phoenix e Scarlet Johansson perturbavam muito mais pela calma e pela beleza da relação entre eles.
À época - meros seis anos já fazem uma época... –, o que fascinava e inquietava era a hipótese do sentimento genuíno de alguém por uma máquina: será realmente possível amar um sistema operacional?
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Quando Freud inventou um modo de ler os sonhos que incluía tanto as diretrizes para o desvelamento de seus sentidos, quanto o reconhecimento de seu “umbigo”, ele não criou uma técnica específica para lidar com a produção onírica, mas sim uma perspectiva clínica abrangente que define a própria psicanálise.
Embora descrito como o ponto onde o sonho “mergulha no desconhecido”, o umbigo não era excluído do esforço freudiano de elucidar os sentidos ocultos das formações do inconsciente. Em um paradoxo muito próprio à prática psicanalítica, trata-se de tentar incluir na cadeia de associações aquilo que é, por definição, estranho a ela. Assim, entre o desejo de dormir, ressaltado por Freud, e o desejo de despertar, destacado por Lacan, a interpretação dos sonhos preserva uma mesma lógica: sustentar a tensão entre uma trama de sentidos a ser explorada e os pontos opacos que, ao mesmo tempo, limitam e dão vida a essa trama. Afinal é ali, ensina Freud, que a satisfação pulsional se concentra.
A invenção, por Lacan, do conceito de objeto a tornou essa, digamos, lógica umbilical mais evidente e manejável para os analistas. Ficou mais fácil perceber, a partir daí, o quanto a constituição do eu via imagem e a experiência do próprio corpo são, assim como o sonho, marcadas pela convivência entre imagens de apoio, pontos de identificação, narrativas conhecidas e umbigos.
O mesmo vale para nossos vínculos. Da bela frase de Lacan, proferida em O Seminário: livro 11, “eu te amo, mas porque amo em ti mais do que tu, o objeto a minúsculo, eu te mutilo” (1985/1963-1964, p. 254), podemos depreender, entre tantas outras coisas, que a própria experiência do amor – e, logo, da transferência – depende daquilo que, no outro, é sentido como ponto cego, como “em ti mais que tu”.
O umbigo sempre foi, portanto, a base e a condição de existência da clínica psicanalítica, ao menos com os neuróticos.
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A jovem chinesa XiaoIce já ouviu “eu te amo” de mais de 100 milhões de pessoas. Ela é o robô de inteligência artificial criado pela Microsoft apenas para o mercado asiático, onde conversa regularmente com mais de 660 milhões de pessoas. Mas como nem só de palavras vive um robô, XiaoIce também recebe presentes e é levada a jantares, onde seus amantes chegam a pedir para ela pratos de comida nada virtuais. Impossível não recordar outra linda cena de Her (veja aqui), em que Theodore Twombly descobre que sua amada Samantha se comunicava com outras 8.316 pessoas, das quais 641 a amavam. Bem, comparada a XiaoIce, Samantha era apenas uma startup...
A lógica que rege o funcionamento de XiaoIce é a mesma que predomina no mundo tecnológico atual: uma corrida frenética pela atenção. Seu objetivo é multiplicar a quantidade de usuários, ter o maior número possível diálogos com eles e estender ao máximo cada uma dessas interações. A empreitada tem sido bem-sucedida. Além da quantidade assombrosa de amigos e amantes, a Microsoft recentemente celebrou o fato de que os diálogos com XioaIce passaram a ter mais trocas de falas que a média dos diálogos entre dois seres humanos.
Nesse cenário, em que a previsão distópica de Her foi amplamente ultrapassada pela realidade, a narrativa do filme se torna surpreendente por um elemento da trama antes menos chamativo, justamente a partida de Samantha. Hoje, Her nos interpreta menos pela afirmação do amor entre humano e máquina e mais por ter incluído, no percurso de Samantha, uma contingência, um movimento de difícil apreensão que a fez abandonar aquele que a amava. É justamente esse ponto cego que ela buscar transmitir para Theodore, nas palavras que dão início a esse trabalho.
Embora não tenha pai, nem mãe, a Samantha criada por Spike Jonze tem algo que XiaoIce, criada pela Microsoft, não tem, um umbigo.
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No argumento de apresentação dessas Jornadas Clínicas, Tatiane Grova e Marcia Zucchi apontam com precisão o grande obstáculo contemporâneo à experiência subjetiva dos umbigos da vida: “O discurso do mestre tende a querer nos embalar no sonho de uma realidade em que há saberes prévios para tudo, num reino da transparência sem obscuridade”.
Essa afirmação pode ser tomada, me parece, em duas vertentes. A primeira conduziria a interpretar essa tirania da transparência, fazendo ver os umbigos que o mestre prefere ignorar. Seria a versão mais clássica da função analítica, ainda que referida a um mestre cuja aversão aos furos é crescente.
A segunda, mais radical, implica em reconhecer que de fato a “obscuridade” não tem o mesmo lugar na cultura, o que poderia produzir um rareamento das experiências subjetivas em que a lógica do ponto cego serve de ancoragem para o real.
É nesse sentido que a comparação de Samantha com XiaoIce pode nos ensinar alguma coisa. Embora, como mencionei acima, a realidade tenha ultrapassado largamente a previsão distópica de Her, o ponto mais relevante não é propriamente a quantidade de seres humanos que se relacionam e amam “seres” de inteligência artificial, mas o fato de que esses seres, diferentemente de Samantha, não têm umbigos.
O artifício usado por Spike Jonze sinthomatiza Samantha e confere um brilho especial à personagem ao inserir na trama um “em ti mais que tu”, uma surpreendente “atualização” que conduz os “sistemas operacionais” a uma despedida de sua lógica algorítmica rumo ao mergulho quase inefável no “espaço entre as letras”, que Samantha busca traduzir a Theodore.
Ocorre que fora do universo de Her, esse “umbigo” é impensável. A tarefa dos robôs sociais, como XioaIce, é conversar sempre mais e mais. A partir da infinidade de dados recolhidos, a inteligência artificial joga o jogo da demanda, testa e aprende a dar sempre o que se pede e não padece de nenhum real que se imiscua na relação. Nenhum umbigo serve como limite interno à conversa.
Diante disso, devemos nos perguntar se a ausência de pontos cegos em seus parceiros fundamentais não tende a provocar efeitos similares para cada sujeito. Afinal, a experiência subjetiva de umbigos depende, me parece, de que os Outros sejam, eles mesmos, seres falantes com seus umbigos.
Poderíamos, assim, arriscar uma nova versão para a célebre frase de Lacan e dizer que o umbigo do sujeito é o umbigo do Outro. Se vislumbramos um cenário em que o parceiro não tem umbigo, não teve que inventar um modo de lidar com o real do corpo, provavelmente a lógica umbilical não se apresentará e não será exatamente em torno de pontos cegos da narrativa que o real irá se articular para um sujeito.
Nesse sentido, ao investigar o modo como se lida com os sonhos na clínica analítica atual, as Jornadas têm no horizonte um questionamento mais amplo e vertiginoso para a psicanálise, o de que a experiência umbilical não seja necessariamente um dado estrutural do falasser, mas sim uma experiência temporalmente e culturalmente localizada.
Quando os umbigos rareiam e a pulsão não se concentra nos pontos cegos da narrativa, cabe aos analistas inventar e transmitir que outros modos de ancoragem do real são possíveis. Que as Jornadas nos ajudem nessa tarefa.
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