por Elza Marques Lisboa de Freitas - membro EBP/AMP
“Há para a psicanálise uma abordagem do que é o real que se propõe ao humano. Um real que é singular, não universalizável, e é relativo ao modo como a linguagem despertou cada corpo, produzindo ali um gozo. O encontro desta experiência advém na análise como acontecimento contingente, como surpresa. Se o real é o que não cessa de não se escrever, como dirá Lacan, em seu Seminário 20, não significa, no entanto, que ele não insista por trás de toda produção simbólica, e mesmo imaginária. Nesse sentido, sua presença tem sempre o caráter de surpresa.”
(Trecho retirado do Argumento das XXVI Jornadas)
“Há quem diga que todas as noites são de sonhos. Mas há também quem garanta que nem todas, só as de Verão. Mas no fundo isso não tem muita importância. O que interessa mesmo não são as noites em si, são os Sonhos. Sonhos que o homem sonha sempre. Em todos os lugares, em todas as épocas do ano, dormindo ou acordado.”
(William Shakespeare. “Sonhos de uma noite de verão”)
Já nos é muito familiar seguirmos rotas, partindo de Freud, que são traçadas pelos sonhos.
Nessa breve reflexão, supondo que temos o mesmo ponto de partida, vou me ater a Shakespeare. Esse que em sua peça “A tempestade” nos diz – “Nós somos feitos da matéria de que são feitos os sonhos; nossa vida pequenina é cercada pelo sono”.
Escolhi, no entanto, duas comédias - “Sonhos de uma noite de verão…” e a “A Megera Domada”. De certa forma se reproduz nelas a questão de: Será que estou dormindo sonhando? Será que estou acordada ou estou acordada sonhando que estou dormindo? E também vemos o dilema revelado por Freud – “Pai, não vês que estou queimando? – onde fica claro que só o morto não sonha, embora tenha já sonhado. Escolhi duas obras que se escreveram na vertente cômica, pois tem mais a ver com nossa busca de contato com a realidade psíquica enquanto instrumento de esvaziamento do trágico para que dele possamos rir um dia. Os sonhos são produzidos a partir do real pulsional. Dado inaugural no encontro com o Outro. Sendo, esse Outro, externo ao infante é também por consequência imediatamente invasivo e atua pelo significante, pela palavra proferida, sendo o nascituro atravessado a partir de fora pelo objeto, suporte, voz. Concreto como uma pedra. A importância do ouvido e da audição leva-me também a me lembrar do bardo inglês, em outra peça, essa trágica, quando um personagem é assassinado com um veneno que lhe é pingado dentro do ouvido. Não à toa temos a expressão – emprenhada/o pelo ouvido.
Mas afinal o que é uma intriga? A partir desse ponto chegamos às duas outras condições do humano, que no dia a dia se nos apresentam como mais “reais” – o imaginário e o simbólico. No entanto, isso se dá exatamente por seu caráter distinto do real, em afastamento radical ainda que enlaçado.
Em A Megera Domada, um bêbado é convencido por amigos de que é um aristocrata confuso. É levado a um teatro. Assiste a uma peça A Megera Domada, após o que, recolocam-no na rua onde segue dormindo e depois acorda. Ao acordar pensa que sonhou o que deveras viveu. Resolve também domar sua mulher como o faz o personagem da peça/sonho. Há aí uma possibilidade, se quisermos, de seguirmos por via de exame aquilo que chamamos de questões sobre machismo e feminismo. Não o farei aqui.
Já em “Sonho de uma noite de verão” o enredo todo é como um sonho, com personagens e cenários oníricos. Animais falantes, elfos, fadas, uma trupe de teatro ensaiando, em clara metalinguagem a peça a ser apresentada. As situações se criam de modo metonímico. O limite entre sonho e despertar é borrado. Há intrigas amorosas que, quanto mais buscam resolver situações, mais as complicam. Histórias tipo Maria ama João, que ama Antônia, que ama Francisco, que não ama ninguém. Há poções do amor que usadas equivocadamente criam essa grande confusão. A jovem contrapõe ao desejo do pai a sua, escolhe o seu desejo e o sustenta a partir disso.
Em nome do pai tem voz a lei da polis, que desde os gregos, já aparece confrontada pela lei do desejo. Se a intriga toca o objeto voz, sob a espécie de órgão auditivo, temos agora que é introduzida nos olhos de uma personagem a tal poção do amor, não tão evidentemente mortífera quanto o veneno da intriga. (Digo eu), essa poção do amor, que por ordem do rei Oberon, portanto em posição de lei, é feita a partir de uma flor específica pelo personagem Puck, um ser mitológico que, travesso e irreverente, obedece a ordem para que a fabrique.
E onde são derramadas as gotas da poção? Nos olhos da moça, no momento antes de despertar. Vai ao centro da cena o objeto olhar pois a moça, Titania, (por erro de Puck) se apaixonará pelo primeiro ser que se lhe apresente ao acordar. E realmente se apaixona por Bobino, homem também enfeitiçado por Puck e que se tornou um burro falante, pois é primeira figura vista por ela quando acorda.
Acorda, Titania, para continuar num sonho, num pesadelo. Toda essa trama evidencia para nós o caráter construído disso que chamamos amor face à paixão, como que ilustrado na possível poção, a qual quando toca o personagem trocado e não aquele designado nos aponta um ingrediente externo à magia, thyché, o acaso, que baralha as direções. Nunca ao longo da história do amor, que caminha sempre no limiar do precipício da paixão, nunca o amor se dá por conveniência. Ao contrário, é inconveniente. As uniões sim podem se dar por conveniência ou não. E entre as paixões do ódio e os cuidados do amor encontra o autor o caminho para sua arte nos oferecendo aqui o soneto 35. Com o qual termino minha participação.
(A trama é muito mais complexa, fiz dela um uso meramente ilustrativo)
Soneto 35 - William Shakespeare
Não chores mais o erro cometido;
Na fonte, há lodo; a rosa tem espinho;
O sol no eclipse é sol obscurecido;
Na flor também o inseto faz seu ninho;
Erram todos, eu mesmo errei já tanto,
Que te sobram razões de compensar
Com essas faltas minhas tudo quanto
Não terás tu somente a resgatar;
Os sentidos traíram-te, e meu senso
De parte adversa é mais teu defensor,
Se contra mim te excuso, e me convenço
Na batalha do ódio com o amor:
Vítima e cúmplice do criminoso,
Dou-me ao ladrão amado e amoroso.
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