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Real(mente), o que faz despertar​?

por Vicente Machado Gaglianone - membro EBP/AMP



Pejac, "Heavy Sea", em pejac.es, 2016.


Podemos inicialmente tomar a sentença “principal”, aquela inspirada na peça de Calderón de La Barca que carrega o título de “A vida é um sonho” e escandida por um (não), o que daria na sentença latente: “A vida não é um sonho”. Como vimos no argumento[1], o herói da peça é ceifado de sua liberdade e passa a enxergar, ou mesmo construir o mundo, a vida, a partir de sua perspectiva de exílio do Outro. Foi o que no argumento pode ser aproximado da “realidade subjetiva”. Em outras palavras, o mundo da realidade não é dado de saída, mas produzido pelo percipiens. É o mundo, em parte, significante, enquanto produtor de significados. Um mundo marcado pela castração, -phi, por uma negatividade, por uma perda de gozo que implica a morte da coisa pela palavra. No limite esse mundo é uma ficção, terra da “verdade mentirosa”, do enunciado e do discurso que faz laço, uma narrativa construída pelo semblante e pela significação fálica. Assim podemos então dizer juntos com Calderón: “A vida é um sonho”.


A negativa (não) é uma proposição de Lacan em seu Seminário 11, onde dirá que não podemos nos contentar com esse aforismo, delimitando, assim, que ao sonho é reservado um outro Tópos que não a vida. Haveria, portanto, Outra cena para a morada do sonho e para a verdade do sujeito que não na vida e no mundo. Para esta Outra cena têm-se as assertivas mais imediatas e fundantes da Traumdeutung freudiana, a de que o sonho seria a via régia para o inconsciente e uma realização alucinatória do desejo inconsciente, e que possuiria a função fundamental de guardião do sono. Mas, se assim é, por que então produzimos pesadelos que nos fazem acordar?


É que Freud caminhou em sua obra para além do princípio do prazer. Com o princípio da inércia da pulsão de morte, Freud vai se render ao fato de que a satisfação pulsional é marcada inexoravelmente por um além a qualquer determinação adaptativa do sujeito ao campo da cultura, não tendo compromisso com o sentido e as regras da cadeia significante. Conceituação que o fará produzir seus brilhantes trabalhos no “entre guerras” O futuro de uma ilusão (1927) e Mal-estar na civilização (1930), dando todo o peso funesto da ação de Tanatos na civilização.


A satisfação pulsional e o real

Mas o que é essa satisfação que não é recoberta pelo desejo inconsciente? É que há algo que não cessa de não se inscrever e que evoca o trauma, e nesse novo contexto o supereu, não é só aquilo que do eu regula seu ideal, mas antes, e sobretudo, é d’Isso que se trata, e que diz: Goza! Se forçarmos ao limite o Isso quer o quê? Em Totem e Tabu (1913) Freud adiantou que o pulo que o homem faz da natureza à civilização não é sem um resto que sustenta uma tendência à recuperação de um gozo perdido. Portanto, o Isso quer recuperar fundamentalmente as satisfações fundamentais desse tempo lógico: o incesto e o parricídio. A equação de entrada do sujeito na linguagem não encontra uma pontuação final e definitiva que recubra tudo o que é da ordem do gozo. “Só a dimensão da entropia dá corpo ao seguinte – há um mais-de-gozar a recuperar”[2], acrescenta Lacan. Um gozo suplementar, regido pelo único objeto que se trata de fato para a psicanálise - o objeto a, causa de desejo - e que se constituirá como uma espécie de “buraco negro” para onde convergem e, ao mesmo tempo, de onde provêm, todas as formações do inconsciente, o que Freud teria chamado de umbigo do sonho. Ponto de fechamento e ao mesmo tempo de abertura, a das ding, o Real lacaniano. Essa distopia dinâmica do aparelho psíquico, Freud já a teria circunscrito em Suplemento metapsicológico a teoria dos sonhos (1917), ao dizer que dormindo o sujeito “renuncia ao sono por temer seus sonhos”[3]. Lacan localiza esse ponto nodal ao dizer que é “(…) a função da tiquê, do real como encontro – o encontro enquanto que podendo faltar, enquanto que essencialmente é encontro faltoso (...)”[4]. E por fim acrescenta, “Com efeito, o trauma é concebido como devendo ser tamponado pela homeostase subjetivante que orienta todo o funcionamento definido pelo princípio do prazer”[5].


Mais uma vez fica adiada a compreensão de onde achar a verdade do sujeito. Nem no mundo, nem no sonho. O sonho assim delimitado, com toda a sua plasticidade imagética, feito de colagens surrealistas através da sobredeterminação das condensações e deslocamentos, vai servir como ciframento que vem recobrir o trauma, o que faz Lacan em seu Seminário 17 dizer junto com Freud que, por fim, acorda-se para continuar sonhando.


Surpresa e despertar

O ponto de chegada é então que não há o despertar, a não ser na morte e no sexo, na medida em que estes encubram a relação sexual que não há. O real, assim como o sol, não se pode olhar de frente, somente de soslaio e será sempre (mal)dito por ser indizível, como num umbral dos filmes de ficção por onde, pelo portal, ele se abre para tornar a fechar. Mas, uma vez tomado nas redes significantes de uma história, pode vir a reescrevê-la com mais graça e leveza. É justamente desta possibilidade que testemunham os passes dos AE de nossa comunidade.


No famoso sonho do Homem dos ratos interpretado por Freud em 1909, Länzer em seu delírio neurótico cruza com uma moça e supõe ser a filha de Freud e que este queria que dela desposasse. Sonha, então, que encontrava com ela e no lugar dos olhos havia duas bolas de estrume. Freud lhe diz que ele desejava casar-se com uma jovem não pelos seus belos olhos, mas pelo seu dinheiro. Os “belos olhos” condensavam tudo o que de essencial articulava a forma de gozar do sujeito Länzer. A dívida impagável ao pai, sustentada pela ambivalência daquilo que do amor não recobria o fundo de ódio da trama edípica, e a pregnância dos objetos fundamentais: olhar - a aquiescência da pulsão escópica com o corpo da mãe, que é apanágio dos dois crimes fundamentais do incesto e do parricídio, e anal - que o sustentava como objeto obturador do enigma do desejo do Outro. Nesse “lance de dados que não abole o acaso”[6], o analista se fez mais que surpreendido, mais que surpreendente, mas “surpreendedor do real, porque aquilo cuja forma original é traumatismo é o real”[7].

[2] Lacan, J. “o avesso da psicanálise”. In: Seminário 17. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1992, p. 48.

[3] Freud, S. “Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos”. In: Edição Standart Brasileira das Obras Completas Psicológicas. Rio de Janeiro, Imago, 1969 p. 232.

[4] Lacan, J. “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise”. Seminário 11. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editora, 1985, p. 55-57.

[5] Idem, p. 57.

[6] Título de um poema de Mallarmé trabalhado por Lacan em seu Seminário 11.

[7] Miller, J.-A. Los inclasificables de la clínica psicoanalítica. Buenos Aires, Paidós Editora, 2008, p. 19.

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