por Stella Jimenez - membro EBP/AMP
“Nós somos do tecido de que são feitos nossos sonhos”[1], escrevia Shakespeare no século XVI. Ele teria acrescentado “e do tecido de nossa análise”, se tivesse conhecido Freud. E, certamente, o próprio Bardo não suspeitava da profundidade desta frase. O falasser, a análise e os sonhos são formados pelo entrelaçamento dos fios invisíveis do Real, do Simbólico e do Imaginário. Como todo tecido, os seres falantes, os sonhos e o processo analítico são crivados de pequenos e de grandes furos. E como toda malha, ao se puxar muito um fio, o tecido fica amarrotado e os buracos, escondidos.
Se um sujeito está invadido pelo real, a linha do real, puxada, fecha aparentemente os buracos. Geralmente o fio mais puxado é o do imaginário.
Vou compartilhar com vocês um sonho que tive com uma analisanda, e o que esse sonho me ensinou. De início direi que considero que sonhar com um analisante é um aviso de que ele está ocupando um lugar na trama inconsciente do analista, que o analista está entrando na relação como sujeito. Cuidado!
O sonho: a analisanda estava me servindo chá. Ao acordar, surpresa, li o sonho em espanhol: Ela está sirvíendote.[2] Servir era um dos S1 da analisanda. Servir, não servir, servil. Percebi que a análise se tinha pautado, unicamente, pela linha simbólica, pelas diferentes posições subjetivas em que o sujeito, simultaneamente, se aliena e se separa, tentando, concomitantemente, corresponder e barrar o desejo do Outro. Eu já tinha percebido que, apesar do trabalho associativo que ela realizava a partir destes cortes pela linha significante, ela não melhorava de seus sintomas.
Percebi que a linha do simbólico tinha sido puxada demais, respondendo à minha procura de verdade. De fato, eu me sentia um pouco fascinada pela maneira com que ela trabalhava os diferentes S1 que iam sendo assinalados. Como a linha do simbólico tinha sido tão puxada, os buracos do tecido pareciam fechados.
Lendo o sonho à letra (pela via do real do sonho), comecei a cortar o discurso da analisante no momento em que ela começava a associar, até que o aparecimento da angústia veio confirmar que tinha voltado a se presentificar a questão “O que o Outro me quer”. Essa pergunta, tendo já atravessado a dimensão simbólica, permitiu que o analista viesse a ocupar o lugar de semblante de objeto e começou a abrir o verdadeiro buraco: aquele que permite ao analisante se confrontar com a inconsistência do Outro, que é a única verdade que, finalmente, conta. Se o Outro não existe, não é o Outro o que goza, e o analisante tem que se responsabilizar pelo seu próprio gozo.
[1]Shakespeare,W. A tempestade, disponível em www.ebooksbrasil.org/elibris/tempestade.html
[2]A palavra “chá” é traduzida por “té”, em espanhol.
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