por Miquel Bassols - AME, membro da ECF, ELP, EOL, NEL, NLS e da AMP
Texto apresentado, e gentilmente cedido por Miquel Bassols, no Seminário Clínico da EBP Seção Rio no dia 28 de outubro de 2019, coordenado por Marcus André Vieira e Romildo do Rêgo Barros. (Texto não revisado pelo autor)
Muito obrigado pelo convite para trabalhar com vocês neste seminário. De fato, eu tomei um tema convergente ao tema dos sonhos em psicanálise, e também o tema do sonho nas neurociências - sobretudo, para ver o sonho dos neurocientistas, os sonhos que têm os próprios neurocientistas -, tudo isso articulado com a questão do tempo que, com efeito, me parece crucial para o próprio tema do sonho.
Vou começar por coisas muito simples até chegar a coisas mais complexas. Partirei de um fato, creio que evidente para todos, que é o fato de que passamos um terço, a terça parte de nossas vidas, dormindo, isto é, sem estarmos conscientes daquilo que acontece em nosso corpo e na realidade. Inclusive sem estarmos conscientes de quais são os pensamentos que nos habitam nesse terço de nossa vida - ao menos um terço. Visto assim é muito tempo. Um terço de nossa vida não sabemos na realidade onde estamos. O tempo do sonho, o fato de dormir, nos aparece como uma descontinuidade na experiência do tempo como uma duração contínua, e é aí, nesta descontinuidade, que nos aparece outro tempo, heterogêneo à duração da consciência, o tempo do sonho - tempo que Freud analisou com suas próprias leis, fora do tempo cronológico da duração. Este outro tempo é um tempo impossível de contabilizar com o relógio. Temos, então, o tempo do sono e o tempo do sonho. Em espanhol, a palavra sueño quer dizer as duas coisas que para vocês se distinguem bem, sono e sonho - em espanhol se diz igual. É nesta descontinuidade que se situa o inconsciente freudiano. De fato, podemos dizer que o tempo, a temporalidade do sonho, segue seu curso, segue operando, quando estamos despertos- esta é a hipótese do inconsciente. E sabemos que, para Lacan, o sonho não ocorre só quando estamos dormindo. Quando despertamos, continuamos, de alguma maneira, a estar ausentes de nós mesmos na realidade. Lacan diz que mesmo nos braços da realidade continuamos sonhando. Isto não é evidente para todos. Para os neurocientistas sonhamos apenas quando estamos dormindo. Para os psicanalistas o tempo do sonho se alarga, se amplia, se estende ao momento em que estamos despertos, ao momento de vigília. Porém, segundo a hipótese do inconsciente, podemos dizer que também estamos ausentes de nós mesmos a maior parte de nossas vidas. A escrita lacaniana do $ escreve isso - o sujeito dividido está ausente de si mesmo, não pode representar a si mesmo. Esta ausência é escrita com o $. A ausência do sujeito do inconsciente é uma espécie de exílio estrutural do sujeito do inconsciente - não estou nunca aí onde penso estar e não estou, tampouco, aí onde penso ser. Na época da internet, isso se faz ainda mais presente – não se está nunca onde se pensa ser, e não se é onde se pensa estar.
Onde estamos quando sonhamos? - podemos perguntar-nos.
Há um famoso relato que creio que todos devem conhecer, de um sonho do filósofo chinês Chuang Tzu, que sonha ser uma borboleta que voava ligeira e despreocupada, muito contente. Quando desperta, Chuang Tzu está confuso. Ao acordar ele se pergunta se pode determinar que era, ele mesmo, Chuang Tzu quem havia sonhado com uma borboleta, ou se ele era uma borboleta que, agora ao acordar, estava sonhando ser Chuang Tzu. Assim, Chuang Tzu se divide entre ele e a borboleta. Esta pequena história do sonho de Chuang Tzu, explicada por Lacan também em seu Seminário 11, mostra a divisão irredutível do sujeito do inconsciente entre si mesmo, um sujeito que está dividido entre Chuang Tzu e seu ser de borboleta, no sonho. Esse objeto de muitas cores, muito vivo ao olhar, que se faz presente no sonho. É uma divisão estrutural que, em psicanálise, lemos como o sujeito dividido pelo objeto, pelo objeto olhar especialmente neste sonho. De um lado, temos Chuang Tzu e, do outro, temos a borboleta do inconsciente - Chuang Tzu sempre estará ausente em relação a essa borboleta, quando tiver acordado. Um e outro, Chuang Tzu e a borboleta, não podem encontrar-se no mesmo tempo. Podemos dizer que o inconsciente freudiano é uma borboleta que sonha que é Chuang Tzu - quando Chuang Tzu desperta e não sabe se ele é, de fato, essa borboleta, se seu ser mesmo não é essa borboleta. Chuang Tzu pode esquecer-se do sonho, é o que geralmente ocorre quando despertamos. Às vezes esquecemos o sonho, até mesmo esquecemos que sonhamos - o que, todavia, é mais conclusivo -, até o momento em que Chuang Tzu pode encontrar, ocasionalmente, uma mariposa passeando no campo e talvez recorde que sonhou com uma borboleta. Pode ser, inclusive, que ele se lembre que, no sonho, era uma borboleta.
[Esclarecimento de Marcus André sobre a tradução de mariposa como borboleta da noite].
Geralmente dormimos à noite e é quando podem aparecer as borboletas[1] da noite, mas também de dia há borboletas. Mas, a borboleta que Chuang Tzu encontrará passeando pelo campo, não é nunca a borboleta que apareceu no sonho, e ela sempre será uma borboleta distinta da que Chuang Tzu encontra na realidade. Porém, é possível que Chuang Tzu se recorde de já haver visto uma borboleta parecida com a do sonho, de tê-la visto antes do sonho, que tenha entrado no sonho como resto diurno. Mas a borboleta vista antes do sonho não será mais a mesma borboleta do sonho. Esta é a teoria freudiana do sonho: há o objeto percebido - o resto diurno -, o sonho, e o objeto da realidade. Eles nunca coincidem. Temos, então, neste relato, três borboletas distintas.
Três borboletas e um Chuang Tzu? - podemos perguntar-nos. Não. Chuang Tzu já está dividido, já não é mais o mesmo, antes de haver sonhado com a borboleta e depois de haver sonhado com a borboleta. Podemos dizer que a borboleta é a parceira de Chuang Tzu, sua mulher, por exemplo, ou seu companheiro - não vamos definir de entrada sua escolha sexual. Em todo caso, para Chuang Tzu, a borboleta é um objeto angustiante que apresenta algo de seu vínculo com o Outro, que o angustia, que o divide.
Escutei um jovem que foi me ver com uma angústia pela separação de seu companheiro e me disse, textualmente: sinto como se tivesse borboletas no estômago. Também se usa essa expressão “tenho borboletas no estômago” no Brasil, para falar da angústia? É uma maneira de falar justamente do objeto indescritível da angústia. O tempo da angústia e, muito especialmente, o tempo do sonho de angústia - o pesadelo, é precisamente o tempo suspenso, o tempo parado entre o instante de olhar e o tempo de compreender, aquele que não pode chegar ao momento de concluir. O tempo da angústia é o tempo daquilo que não tem conceito, é o tempo da presença de algo que não tem representação possível, e que no sonho pode aparecer indicado pela borboleta. É aí onde o sujeito apreende a si mesmo como objeto do Outro - é isso que quero sublinhar, que é neste ponto, em que o tempo fica suspenso, que o sujeito se apreende a si mesmo como objeto para o desejo do Outro, ou para o gozo do Outro. É o tempo suspenso, no qual o sujeito desaparece diante de seu próprio ser de objeto do Outro, diante do olhar do Outro. Esse é o tempo da angústia, tempo no qual o sujeito é o olhar do Outro - é a certeza de ser esse objeto olhar do Outro. O tempo da angústia, como o tempo do sonho de Chuang Tzu, é esse objeto diante do qual o sujeito se divide e desaparece como consciência. Dito de outra maneira, o objeto, esse olhar tomado como objeto, na borboleta do sonho de Chuang Tzu, é o que Lacan isolou como tempo lógico, condensado no instante de ver. É um tempo reduzido a um instante e que requer um outro tempo, o tempo de compreender, para chegar a um momento de concluir. É o tempo do ser do sujeito reduzido a ser o objeto, a ser o seu próprio olhar. É por isso que podemos escrevê-lo (a -> $), tendo como causa desta divisão o famoso objeto a de Lacan.
É aqui que poderíamos articular os dois tempos que Jacques-Alain Miller distinguiu, aqui mesmo no Brasil, como o tempo epistêmico, o tempo do saber, e o tempo libidinal, o tempo que responde ao objeto a. Jacques-Alain Miller distinguiu muito bem o tempo epistêmico como o tempo do significante para elaborar um tempo de compreender, e um tempo libidinal, pulsional, que Lacan condensa com o objeto a. O tempo libidinal, o tempo condensado pelo objeto a, é o tempo da urgência subjetiva, do açodamento, da pressa, do que Lacan chama em francês, “la hâte”, a precipitação. Em “Erótica do tempo”, Jacques-Alain Miller descreve como o objeto a se esconde no seio do tempo lógico. É neste tempo precipitado que se esconde a incidência do gozo, poderíamos dizer, o gozo de Chuang Tzu de ser borboleta.
O interessante que quero introduzir, é que esta dimensão do tempo do objeto a, que se faz irrepresentável para o sujeito do significante, é precisamente o que as neurociências tentam apreender como o sujeito da consciência, ou, o sujeito da cognição. É o que António Damásio, a quem vou me referir um pouco como um dos representantes mais conhecidos das neurociências atuais, tenta apreender com sua teoria do Mapping. Mapping, ou seja, fazer um mapa da realidade no sistema nervoso central. Vou avançar um pouco para dizer algo sobre como as neurociências atuais tentam abordar esse ponto, porque, com efeito, é tentando mapear a realidade que se encontra sempre uma espécie de “no man’s land”, ou seja, de um lugar irrepresentável. Encontram o que nós chamaríamos de um Real que escapa necessariamente à representação, muito especialmente quando se trata do sonho. É, precisamente, quando as neurociências tentam abordar o fenômeno do sonho que encontram uma defasagem, uma impossibilidade de situar o correlato neuronal com o fato mesmo de sonhar.
Resumirei brevemente o que se sabe hoje da psicofisiologia do sonho.
Supunha-se que o sonho se produzia na fase do sono denominada de REM, ou seja, no momento que as pálpebras se movem mais e, curiosamente as pupilas, ou seja algo da ordem do escópico, produzem mais movimento. Supunha-se, porque as recentes investigações têm constatado que não é assim, que não se pode encontrar, nem mesmo na fase REM, uma correlação da atividade neuronal com a produção de sonhos. Foi um choque, porque na hipótese do correlato neuronal, que sabemos que Lacan criticava desde cedo, não funciona no caso do sonho. De fato, a hipótese freudiana é que o sonho não se produz durante o momento de dormir, mas que se produz no intervalo do momento de acordar. Se lermos bem A interpretação dos sonhos, o que chamamos de o sonho como tal, passando pela elaboração secundária, se produz no momento exato de acordar. O sonho como tal, como formação do inconsciente, se constrói no momento de acordar, sendo já uma elaboração secundária que dá uma forma argumental, embora pareça absurda, a uma série de representações do inconsciente. Freud usa um exemplo, que me parece muito interessante, que nenhum neurocientista poderia explicar.
Vou citar essa passagem da A interpretação dos sonhos onde se encontra o exemplo de um sonho de Alfred Maury. É um episódio decisivo para entender que basta o estímulo de um instante para formar um longo sonho, como o seguinte: “o sujeito está na cama, doente, e sua mãe estava sentada na cabeceira da cama. Ele sonhava que estava vivendo no período do terror francês, o momento da revolução francesa, perante um júri que iria julgá-lo por revolucionário. No júri estavam Robespierre, Marat e alguns outros que tinham escutado seu testemunho e o tinham condenado à morte. O sujeito sonha que depois do julgamento, sai em uma carroça puxada por cavalos, por um longo percurso, até chegar ao cadafalso onde será guilhotinado. O percurso é longo, penoso, angustiante, - aqui a "borboleta" é o longo caminho angustiante até chegar à guilhotina. Quando chega no cadafalso, a lâmina da guilhotina cai e corta o pescoço dele, a cabeça sai rolando e o sujeito acorda angustiado. Quando ele acorda, angustiado, conta Alfred Maury, percebe que uma parte da cabeceira da cama em que dormia caiu sobre seu pescoço e bateu, justamente, no lugar que, no sonho, a guilhotina havia cortado seu pescoço”.
Então, diz Alfred Maury, se verifica que o sonho havia sido construído inteiramente em um só instante, precisamente nesse instante. A mãe confirmou que ele havia acordado no exato momento em que a parte da cabeceira havia caído. Portanto, um sonho longo, que na consciência do sujeito era uma duração contínua, tinha se construído nesse único instante.
Freud comenta o sonho, um sonho que gerou uma interessante discussão em suas reuniões. Comenta para considerar como é possível que o sonhador condense em um breve lapso de tempo, compreendido entre a percepção do estímulo que o desperta e o conteúdo onírico, que era muito complexo, muito rico, e argumentativamente era quase um filme. Freud diz, então, que o sonho se constrói como uma formação instantânea, como um cristal que se cristaliza de repente. É como a imagem que Jacques-Alain Miller tomou em um momento sobre a transferência, quando falava de um elemento que se precipita e cristaliza em um só instante. Assim o sonho também se constrói. Bom, isso coloca um problema de tempo muito interessante, ou seja, que o próprio sonho como formação do inconsciente se produz de uma forma instantânea, comprimindo o tempo de compreender e o momento de concluir.
Passo agora a examinar como António Damásio tenta resolver a questão do sonho e do tempo do sonho. António Damásio trata disso num livro que se traduziu em espanhol por Y el cerebro creó al hombre. Na verdade, o livro em inglês tem como título Self comes to mind, o que em espanhol foi traduzido religiosamente como O cérebro criou o homem, evocando imediatamente a ideia de como Deus criou o homem; no lugar de Deus está o cérebro, como o objeto fundamental do ser humano.
O desenvolvimento da tese de António Damásio é a ideia do cérebro como um mapeador, como um construtor de cartografias da realidade. Como se no sonho tivéssemos um mapa estranho da realidade, diz António Damásio, algumas imagens que provavelmente se originam do cérebro quando faz mapas, especialmente, quando faz mapas de si mesmo fazendo mapas, - sublinho essa expressão. No sonho, o cérebro, segundo António Damásio, faria mapas de si mesmo fazendo mapas. É um tipo de metalinguagem, de metamapa. O que Damásio tenta apreender são imagens muito abstratas, mas que nos apresentariam ao mapeador do cérebro fazendo mapas de si mesmo. Trata-se, com efeito, de uma espécie de imagem em caracol (looping), de uma espécie de fuga ao infinito, de mis à l'abîme diria em francês, da impossibilidade de representar o próprio sujeito do sonho como tal. Um cérebro que não só mapeia a realidade exterior e o corpo interior, mas que também mapeia a si mesmo no ato de fazer mapas. É o mesmo paradoxo que encontramos em muitos autores, em Escher, por exemplo, em Douglas Hofstadter quando fala, em seu texto sobre Escher e Bach, da impossibilidade de apreender o sujeito da consciência em si mesmo, como tal. E é o mesmo paradoxo que encontramos na psicanálise para isolar o sujeito do sonho, o sujeito que estaria dizendo “eu estou sonhando”. Queria adicionar a isso uma observação muito interessante de Éric Laurent: no sonho, constatamos que não há ninguém que possa dizer “eu sonho”. Quando isso aparece, às vezes aparece como “neste momento estou sonhando”. Dentro do sonho pode aparecer essa ideia, é quando Freud diz que estamos o mais perto possível do furo do real, do mais reprimido no sujeito, estamos, quase diríamos, no nó real do tempo do sonho.
Esse paradoxo será especialmente interessante quando António Damásio fala do inconsciente freudiano, nesse livro. Ele vai fazer de uma maneira que me parece muito honesta e ao mesmo tempo muito interessante, explicando um sonho dele mesmo, um sonho do próprio António Damásio. Parece-me um detalhe clínico excelente. Vou dizer que é o capítulo mais interessante do livro, você pode pular todos os demais e ir diretamente a esse capítulo onde explica seu sonho, que é um sonho que traz a angústia, como o de Chuang Tzu. Cito-o tal como António Damásio contou. Trata-se um sonho de repetição, é um sonho que ele sonha a cada noite, especialmente, quando lhe convidam para fazer uma conferência sobre neurociências e Freud ou neurociências e psicanálise. António Damásio foi muito influenciado pela leitura de Freud, isto é conhecido, então o convidam com frequência a falar sobre neurociências e Freud. “Cada noite antes da conferência”, ele diz, “tenho esse sonho”. Ele diz, “as variantes são mais ou menos sempre parecidas sobre uma mesma cena. Estou atrasado, chego tarde, como o coelho da Alice que sempre chega tarde, muito tarde, e me falta alguma coisa fundamental. Geralmente são meus sapatos que desapareceram. Às vezes também aparece a sombra da minha barba, que já havia se transformado em uma barba de vários dias, porque não encontro a máquina de barbear em nenhum lugar ou também acontece que o aeroporto está fechado por causa do nevoeiro e não posso voar para chegar na conferência. Me sinto angustiado e às vezes com um grande embaraço, como quando no sonho, obviamente, caminho na cena da conferência que estou realizando, sem sapatos.” "Mas", diz António Damásio, “vestido de Giorgio Armani” [2].
Sem sapatos, mas com uma roupa de Giorgio Armani, muito elegante, mas sem sapatos. E ele se sente fantástico, falando sobre psicanálise e neurociências, sem sapatos. António Damásio termina dizendo, e isso é interessante: “e por isso ainda hoje não deixo nunca os sapatos para limpar na porta do quarto do hotel, por medo que desapareçam”. Nós diríamos, digo entre parêntesis, não é grave, mas isso é um sonho de um obsessivo absoluto. Teme perder o objeto de sua angústia na medida em que é o objeto perdido como tal. Mas é um verdadeiro sintoma de António Damásio, um sintoma de sua relação com a psicanálise. Em sua teoria de Mapping há algo que não pode se representar, que é essa ausência dos sapatos. O interessante é que há muitas representações no sonho, mas falta uma: os sapatos que não deixam de não se representarem. E essa, vocês reconhecem, é a fórmula lacaniana do real: aquilo que não cessa de não se representar, aquilo que não cessa de não se escrever. Noite por noite, antes de dar a conferência sobre psicanálise e neurociências. Trata-se, com efeito, de um desses sonhos traumáticos de repetição, onde o que se faz presente é o tempo do real. Ou o real do tempo do inconsciente.
Esse instante que não se pode quantificar, cronologicamente no relógio, mas que insiste na duração da vida do sujeito como tal. O inconsciente real é, precisamente, este lugar. Podemos dizer que o inconsciente real são os sapatos de António Damásio, que insistem em não se fazerem representar em seu sonho como o objeto da angústia. Poderíamos nos perguntar, inclusive, se não seriam os sapatos de António Damásio que estariam sonhando com ele, seguindo a lógica de Chuang Tzu, que é a borboleta que está sonhando com António Damásio.
Podemos voltar agora ao sonho de Chuang Tzu para percorrer um pouco sua lógica e tentar fazer uma certa lógica desse assunto. Porque, comentando este mesmo sonho, não o de António Damásio, mas o de Chuang Tzu, Lacan sublinha que em nenhum momento a borboleta se faz a mesma questão. O problema não se coloca de maneira correlativa. Isso quer dizer que em nenhum momento a borboleta se pergunta se ela pode ser o sonho de Chuang Tzu. Isso quer dizer que entre Chuang Tzu e a borboleta não há reciprocidade possível, não há intersubjetividade possível.
Não há intersubjetividade. Esta será uma das afirmações de Lacan, especialmente em seu texto “Proposição de 9 de outubro de 1967”, que pode ser talvez uma das poucas críticas que Lacan faz a si mesmo. Há várias críticas que encontramos de Lacan a si mesmo, mas esta eu diria que é a mais severa, quando ele diz: até agora, eu havia pensado a transferência como uma relação intersubjetiva. A partir de 1967, Lacan deixa muito claro que a transferência não é uma relação entre dois sujeitos, que não há intersubjetividade possível, muito especialmente, a partir deste texto, se faz impossível a reciprocidade entre sujeito e objeto. O famoso problema do tempo lógico, que Lacan havia elaborado no anos 40, em seu texto “O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada”, de 1945, no qual, vocês se recordarão, Lacan estabelece os três tempos lógicos e a arrumação mesma do tempo subjetivo, com o instante de ver, o tempo de compreender e o momento de concluir. Mas em 1967, vai subverter esse tempo intersubjetivo que aparece no tempo lógico e, alguns anos depois, vai reler-se a si mesmo, especialmente em seu seminário Mais, ainda, de 1972, relendo seu próprio texto sobre o tempo lógico.
Vou dizer algumas palavras sobre isso para dar a forma lógica do que quero transmitir hoje. Porque, com efeito, no problema dos três prisioneiros, tudo se funda em uma relação intersubjetiva entre os três que modula o tempo lógico necessário para que os três concluam que levam o disco branco nas costas. E esse é um tempo de três sujeitos, no qual cada um toma o outro como sujeito de seu pensamento. Mas, já no texto do tempo lógico, Lacan fala de um momento no qual diz que se produz uma dessubjetivação ao grau mais baixo. No momento em que o sujeito se faz a pergunta “quem sou eu para o outro”, Lacan usa a expressão “dessubjetivação ao grau mais baixo”, e diz que o tempo parece ter estourado como uma bolha. O tempo da duração estourada, como em um instante, como no instante do sonho, é aí onde aparece esse objeto como consistência lógica.
São 27 anos que separam 1945 e 1972, quando Lacan se relê. Pode-se ler nesse momento que se escreve, e não apenas que se escuta, ou seja, quando entra em jogo a escrita e a letra, a função da urgência, da pressa, da hâte, é esse pequeno objeto a que atetiza; atetiza quer dizer o que põe em escritura alguma coisa, o que faz passar à letra esse tempo da urgência. E Lacan diz, aí se impõe uma correção ao meu tempo lógico de 1945, ao menos uma releitura da concepção intersubjetiva do tempo lógico. Não se trata de intersubjetividade em relação ao problema proposto, o que se deve pôr em evidência, diz Lacan, é o que suporta cada um dos sujeitos, não por ser um entre outros, não por ser um sujeito entre outros sujeitos, mas por ser em relação aos outros dois sujeitos, aquele que é a aposta no objeto de seu pensamento. Esse é o grau de subjetivação mais baixo, que é onde Chuang Tzu se apreende como borboleta, exatamente nesse momento. Nesse terreno, cada um intervém sozinho, a título de objeto a, sob o olhar dos outros. É nesse momento de dessubjetivação ao grau mais baixo, que é onde, diz Lacan, deixa de haver intersubjetividade. Como é a experiência analítica, como a escrevemos, não é a relação entre dois sujeitos, mas do analista, sustentando o lugar de objeto a, e o sujeito que é o único sujeito como tal. E aí, dirá Lacan, o que pareciam ser três sujeitos, em realidade, num primeiro momento serão 2 + a (3 = 2 + a), num primeiro momento da escansão lógica. Mas, diz depois, os outros dois contam também como um só sujeito. De modo que, finalmente temos 3 = 2 + a = 1 + a. Estes dois frente aos quais me apreendo como objeto, tampouco são dois sujeitos, mas se reduzem à função de um mais a função de objeto a, na qual eu mesmo apreendo meu ser de objeto.
Esse tema me parece muito importante para entender que, para Lacan, o sujeito é transindividual. Sendo assim, somos muitos indivíduos, mas, no sentido forte lacaniano, há um só sujeito. Em francês, a palavra sujet quer dizer também um tema. Le sujet d’une conférence ou O tema de uma conferência. Somos muitos indivíduos, mas, para Lacan, pelo efeito do significado seria um, mas seria coletivo. Sobre isso podemos conversar depois, pois me parece que traz muitas consequências políticas, especialmente na época do Campo Freudiano Ano Zero e Zadig. Nota de pé de página, mas fica para estudar.
Em todo caso, Lacan nos dá aqui o que podemos chamar de uma formalização do tempo, a fórmula do tempo lacaniano: 1 + a. Assim, a partir do pequeno a, os dois outros são contados como 1+ a que funcionam e que podem chegar a ser a saída da urgência dos três indivíduos. É a função do a que permite que os três se precipitem para a saída. Isso, dirá Lacan, seja qual for o número n que esteja em jogo. Aqui são três, mas poderiam ser quatro, cinco, seis. O efeito temporal, lógico, do sujeito, se produz ou deveria se produzir da mesma maneira.
Bem, isto nos indica várias coisas. Primeiro, que o tempo é irredutível à sua dimensão significante. A função pulsional do objeto é crucial para entender a causa mesma do tempo, inclusive o tempo como duração, como tempo cronológico. Essa é a função que se evidencia especialmente em relação à urgência subjetiva quando o sujeito passa ao ato. A experiência do tempo é, então, a experiência daquele sujeito que se apreende como objeto na passagem ao ato. Esse tempo não poderá ser nunca apreendido pelo tempo cronológico, nem pelos mapas da tecnociência. Mas poderíamos dizer que essa tecnociência, que hoje nos oferece uma série de novos objetos tão fascinantes como a borboleta de Chuang Tzu, essa mesma tecnociência já se converteu para o sujeito de nosso tempo em um objeto a mais na sua fantasia, em uma nova versão da mariposa de Chuang Tzu, este objeto frente ao qual nos perguntamos se não seríamos nós mesmos um sonho deste objeto. Fico aqui.
Créditos:
Transcrição por Anna Luiza Almeida, Heloisa Shimabukuru e Patrícia Paterson
Texto estabelecido por Ondina Machado
Revisão de Maria Corrêa
[1] NT: O termo usado pelo autor em espanhol foi mariposa, aqui substituído por borboleta, mais adequado ao contexto, conforme consta no Seminário 11, p.79.
[2] Damásio apud Bassols, M. "Os sapatos de António Damásio". Em: A psicanálise, a ciência, o real. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2015, p. 218
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