por Maria Isabel Lins - membro EBP/AMP
Vou ao teatro.
A peça começa com a personagem constatando ser por demais intensa, fato que atrapalha sua vida. Seja no trabalho, nas relações sociais ou mesmo nas coisas do amor. A intensidade a paralisa, a impede de realizar seus sonhos ou de fazer de seus sonhos um projeto de vida.
Segue com a seguinte história:
É convidada por uma colega para, juntas, fazerem um documentário, ao que ela responde “não” e esclarece sua negativa deste modo: a dela é mais a realidade, já eu sou mais a ficção. Adoro fazer teatro; o monólogo continua...
Do teatro à psicanálise
Neste curto relato o autor da peça trata de realidade e ficção como se fossem elementos antagônicos, excludentes, quando, de fato, estamos diante de uma relação moebiana concernindo os dois, realidade e ficção, ou vida e sonho. Um continuando o trajeto do outro numa tal intimidade e solidariedade, que não permite separação ou interrupção mas, apenas, continuidade. Onde um começa e o outro termina, é o tipo de pergunta que não cabe ser feita, estão numa mesma superfície, apenas variando o estar dentro ou fora, para logo se revezarem. Poderíamos talvez pensar em algum ponto de suspensão entre o fora e o dentro? Mas o tempo aí é microscópico, diminuto, soberano: não há como sair dessa superfície; se o enlace for moebiano, é definitivo.
Na ficção, a personagem busca alienar-se do que a faz ansiosa e angustiada. Diz que diante de cada projeto ou anseio, o insuportável se reapresenta. É a angústia na sua face signo de desejo e sinal do real. Porém, é na ficção e na linguagem teatral que ela vai encontrar uma acolhida satisfatória para seus desarranjos. A intensidade pode ir se diluindo à medida em que o palco a sustenta e lhe dá vida, como se fora, de fato, seu habitat.
No campo da realidade, está cristalizada pela intensidade e tudo que consegue, no momento, é recorrer à plateia numa tentativa de continuar em cena, evitando assim uma fuga do tipo passagem ao ato.
Como se livrar dessa intensidade que poderíamos chamar, nós, do lado de cá, de real? É insuportável, se repete, se apresenta sempre nas mesmas ocasiões e é causa de angústia?No seminário, livro X[1], Lacan tem uma frase bem sugestiva sobre esse real, o excesso que é causa de tão temida intensidade. Nos diz assim: “... A ligação desses dois termos (excesso no embaraço e o que há a menos na efusão) é essencial para nosso tema, uma vez que enfatiza sua ambiguidade. Se aquilo com que lidamos é demais, ele não nos falta. Se vem a nos faltar, por que dizer que nos embaraça noutro lugar?”.
Assim, o que de fato vai sendo encenado nesse monólogo não é a ambiguidade entre o a mais ou o a menos, mas a estreita relação entre vida e sonho, entre realidade e ficção. Onde um começa e o outro termina, isto continua sem resposta, mas é certo que a personagem em jogo não fugiu da raia. Mesmo que a cada subida ao palco, de novo, essa intensidade reaparecesse. No entanto, se isto parecer incongruente, é ao mesmo tempo condição e possibilidade de continuar no trajeto moebiano. De velar para que o sonho sustente a vida e a vida, os sonhos. Como viver sem sonhar? Sonha-se, vive-se, mas a vida não é um sonho. Se não se tem como evitar o real nem a angústia - uma de suas caras –fazer teatro, representar, se analisar, produzir significantes são maneiras de tratá-los. De mitigar a intensidade. De poder dispensá-la à condição de se servir dela.
Assim, podemos concluir, em consonância com a proposta das Jornadas: “A vida (não) é um sonho: Surpresa e real na psicanálise”, que ela, a vida, estará para sempre nesse enlace amoroso com o sonho! São indissociáveis, mas não se confundem, ou como nos diz Fernando Pessoa:
“... o sonho é o que temos de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente nosso.” (O Livro do Desassossego).
Referências
Lacan, Jacques – O Seminário, Livro X: a angústia - p.: 89 – Tradução Vera Ribeiro. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.: 2005.
Pessoa, Fernando – Livro do Desassossego – p.: 60 Nota 22 – Edição de Jeronimo Pizarro – Editora Tinta da China, RJ, 2013.
[1] Ver o quadro da angústia no mencionado seminário, página 89. Embaraço está no ápice da dificuldade e do movimento ao qual se seguem a passagem ao ato e a angústia.
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