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Comentário: Trecho do texto de Jacques Lacan "A psicanálise verdadeira e a falsa"

Lenita Bentes - membro EBP/AMP


"Assim, somos nós, e não eles, que dizemos que o desejo, seja ele do sonho ou da vigília, não é articulável na fala. Mas nem por isso é verdade que ele não seja articulado na linguagem e que, deslizando como o anel do jogo de passa-anel pelo fio da metonímia que o retém num círculo de fantasia, não produza metaforicamente o significado do sintoma em que essa fantasia se realiza."*

O falso reclama o verdadeiro e vice-versa. Em cem anos de psicanálise todo o seu campo teórico se ocupa da verdade como deslocalizada e sempre contingente. A verdade do inconsciente participa tanto da razão quanto da desrazão, e mesmo que estranha ao psíquico não deixa de fazer marcas corporais. Se a psicanálise verdadeira tem seu fundamento na “relação do homem com a fala”, isto quer dizer que, a partir de Lacan, se dá uma ruptura com o desvio evolucionista que, então, dominava a leitura do texto de Freud, restabelecendo assim a lâmina cortante de sua verdade.


Com Lacan, fomos advertidos do deslocamento metonímico infindável, sem ponto de capiton para pensarmos em rupturas, cortes e escanções. Foi o que propôs Freud ao indicar que a verdade do inconsciente estaria no que aparece como corte do sentido, ou seja, nos sonhos, nos sintomas, nos chiste enos atos falhos.


A clínica estruturalista serve a Lacan para introduzir o retorno a Freud e banir as mistificações da psicologia do ego que se ocupou de uma distorção da qual ela própria estava a serviço, por exemplo, ao validar uma relação dual entre analisante e analista. Foi esta dita “psicanálise” que Lacan chamou de falsa, ao reivindicar a abordagem do desejo como não articulável na fala, porém articulado na linguagem. Lacan exemplifica com o jogo do passa-anel o deslocamento metonímico do desejo que corre sob a cadeia significante retido num círculo de fantasia produzindo metaforicamente o significado do sintoma que esta fantasia realiza.


A precisão e a riqueza desta argumentação nos aproximam da distinção entre transferência e sugestão, entre a verdadeira e a falsa psicanálise, da demanda apreendida em seu efeito de desejo e analisada em seu efeito de sugestão, tal como aponta Lacan no parágrafo acima citado.


Lacan prossegue até o final do texto fazendo duras críticas àqueles que se orientam por uma leitura que desmerece o texto freudiano ao afirmar que não se trata na psicanálise do sujeito do conhecimento, mas do sujeito da fala, “isto é, tal como ele emerge na dimensão da verdade”. Foi com esta preocupação que Freud fundou uma comunidade que garantiria essa guarda, a IPA, a qual Lacan designa como igreja sem fé e exército sem pátria.


É impossível nos determos apenas num parágrafo sem sermos arrastados, até o final, pela riqueza e precisão do texto!


"A vida (não) é um sonho: surpresa e real na psicanálise" abre à boa ocasião para fazermos do vigor do texto de Barcelona o trilho por onde passará, na clínica de cada um, o rigor da interpretação de cada inconsciente que, no singular, apela não ao sentido mas ao real.


* Barcelona, setembro de 1958. Jacques Lacan, "A psicanálise verdadeira e a falsa", em Outros Escritos p. 179.



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