por Angela Negreiros - membro EBP/AMP
É por isso que chamo de nadas os Uns de uma das séries laterais do triângulo de Pascal. Esse Um se repete, mas não se totaliza por essa repetição, o que se apreende dos nadas de sentido, feitos de contrassenso, a serem reconhecidos nos sonhos, nos lapsos ou até nas “palavras” do sujeito, para que ele se dê conta de que esse inconsciente é o seu[1].
No seu ensinamento Lacan vai se acercando da relação entre o real e o sentido. Isso emerge de sua prática clínica na psicanálise e se modela em sua transmissão. Como o sujeito surge de um "pas de sens"- sem sentido? Como a partir de um vazio, um nada de sentido, de representação, é dado um "pas de sens” - um passo de sentido? O sentido é verdade? Na prática, no fazer, na transferência, uma isca de falsidade pesca um peixe de verdade, como nos indica Freud? Como do Real sem cifras surge a repetição do cifrar-decifrar? Qual o limite do cifrável? O que se repete? Lacan reexamina o traço unário freudiano e neste caminhar vai se aproximando da Matemática como a ciência mais próxima do Real com suas questões sobre o nada, o Zero, o Um, o infinito, as consistências e consistências lógicas, as falácias etc.
Em diversos momentos Lacan "conversa" com matemáticos e filósofos, sendo Pascal um companheiro favorito, comentando ao longo do ensino sua famosa aposta relativa à existência ou inexistência de Deus e a sua teorização sobre o infinito: o nada infinito, o não poder saber “se ele é nem como é". Diferente de Descartes que quer provar que Deus existe, Pascal aposta sobre a sua inconsistência. Para Lacan a aposta se refere à existência ou inexistência do grande Outro. A enorme contribuição de Pascal na criação da ciência matemática é permeada pela inconsistência que sua questão religiosa traz, e para Lacan a aposta é perdida de saída, o grande Outro não existe. Mas a aposta, transposta por ele mesmo para a lógica, abriu inúmeros caminhos na ciência, entre eles a noção de conjunto vazio, o estudo dos binômios, o calculo das probabilidades, a matemática das chances.
Neste pequeno trecho do final do Seminário livro 19, Lacan volta ao estudo por Pascal das propriedades e relações do famoso triângulo aritmético aberto ao infinito. Não sabemos quem é seu criador, mas é conhecido e trabalhado o longo de 2.500 anos, descobrindo-se nele diferentes propriedades e sempre se descortinando, através dele, novos campos para a matemática. Pascal escreveu o Tratado do Triângulo Aritmético em 1653. O triângulo, bastante conhecido, tem no seu vértice o número Um, que se repete em seus lados infinitamente, sendo esses Uns somados a uma série determinada de outros números. Lacan o retoma, então, e propõe nomear de nadas a Uns laterais. Referência que junta o nada, vazio de saber, de Pascal, à mônada de Leibniz, o Um substância única, indivisível da origem dos seres. O nada para Lacan é relação vazia, mas insistente, que está contida no Um da mônada como “ponta- de- real”. Essa nomeação (chamar de nadas os Uns) aponta para a existência, nesse triângulo tão inspirador, de um nada subjacente, vazio de saber, um perdido que insiste em se representar desde que a palavra veio traumatizar o ser vivente. Aponta para S de A barrado. Encontramos- nos aí com o Zero e o Um, questões da lógica matemática que Lacan nos traz com seu HÁ-UM. A referência ao sujeito mostra como ele pode se reconhecer como único, mas dividido nas formações do inconsciente, nos intervalos e tropeços da sua cadeia significante, no gozo sentido que escapa pela inexistência do Outro pleno. É aí o local onde pode “saber fazer com”, reconhecer o que inventa com seus depósitos de mal entendidos, com o que vai escrevendo na sua inconsistência, aposta na vida. Lacan vai chamá-lo de Um- dizer, dizer único, de cada um. Também é só seu o gozo que se desvela na repetição, mas terá que passar pela perda que o dizer acarreta para se recuperar no mais-de-gozar. Um dizer não sem o outro, SINTHOMA, delírio- dirá mais tarde Lacan- juntando-se a Freud, o qual propõe que a vida é um sonho. E o que nos indica Freud sobre o sonho? O sonho contado é o que interessa à psicanálise. Algo se cifra e decifra nesse contar, deslocamento, condensação e... o umbigo. O sonho é familiarmente delirante.
Referências
Gorski, G. e Sota Fuentes, M.J (org.) Leituras do Seminário... ou pior de Jacques Lacan. Salvador: Escola Brasileira de Psicanálise, 2015.
Lacan, J. O seminário. Livro 16. de um Outro ao outro. Rio de Janeiro: JZE, 2008.
________ “...Ou Pior”, em Outros Escritos. Rio de Janeiro: JZE, 2003
Miller, J.-A. Curso de Orientação Lacaniana: O ser e o Um. Inédito.
_________ Sutilezas Analíticas. Los cursos psicanalíticos de Jacques – Alain Miller. Buenos Aires: Paidós, 2012.
[1] LACAN, J. O Seminário, livro 19, ... ou pior. Rio de Janeiro: Zahar, 2012, p.234
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