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Comentário de parágrafo do texto "O sonho de Aristóteles, de J. Lacan

por Vanda Assumpção Almeida - membro EBP/AMP

"Falei do despertar. Ocorre que recentemente sonhei que o despertador tocava. Freud diz que sonhamos com o despertador quando não queremos de modo algum acordar. Nesse caso, o psicanalisante cita Aristóteles. Isso faz parte do seu material. Portanto há sempre quatro pessoas entre o psicanalisante e o psicanalista. No caso, o analisante apresenta Aristóteles. Mas o psicanalista tem por trás de si seu inconsciente, do qual se serve ocasionalmente para dar uma interpretação."

Por ocasião do vigésimo terceiro centenário da morte de Aristóteles, Lacan foi convidado a fazer a palestra de abertura da sessão solene. Em seu pronunciamento, estabelece um diálogo entre a filosofia e a psicanálise, servindo-se de um sonho de Alexandre Magno, cujo preceptor fora Aristóteles. Esse sonho também foi trabalhado por Freud nas Conferências Introdutórias, capítulo XV.[1]


Alexandre tentava obstinadamente tomar a cidade de Tiro (322 a.C), que se defendia tenazmente. Sonha com um sátiro dançando. Dentre os soldados do seu exército, encontrava-se Aristandro, o intérprete de sonhos. Tomando a palavra sátiro, que em grego é SATYROS, e, representa na mitologia um ser da natureza cujo corpo é metade humano e metade bode, ele trabalha com a equivocação: sa-turos e diz: tua é Tiro. Impressionado o rei prossegue em batalha, e conquista a cidade.


Acerca dessa interpretação Freud diz que apesar da aparência artificial, era correta, acrescentando a seguinte observação: “estamos palmilhando os caminhos da interpretação dos Sonhos da Antiguidade, [...] que deixou-nos bons exemplos de interpretação dos sonhos, que nós mesmos não poderíamos superar”[2].


Em torno desse sonho Lacan vai tecer seus comentários, seja fazendo conexões entre ambas as disciplinas, como destacando suas dissonâncias. Com isso nos leva ao seio da filosofia.

Enquanto filósofo, Aristóteles foi o primeiro a destacar a necessidade do conhecimento prático, advindo da observação e da atenção dos sentidos do corpo. Fundamentou as primeiras noções da lógica clássica, baseada na argumentação e retórica, levando-o ao Silogismo. Sua filosofia é conceptual, dedutiva e se dá mediante o intelecto e a experiência. Para Lacan o silogismo é, na verdade, “a aplicação do universal ao particular”[3] exemplificando: Todo homem sonha. Aristóteles é homem. Logo ele sonha.


A psicanálise diverge quanto ao princípio demonstrativo e apodíctico da filosofia aristotélica, o demonstrável, que não se pode contestar. A Filosofia visa o ser do pensamento, as verdades universais. A Psicanálise tem no centro de sua investigação o sujeito, enquanto falasser, que não é dedutível da lógica universal. Esse emerge entre os ditos, nos lapsos, na fugacidade do abrir e fechar pulsante do inconsciente. Lacan marca essa oposição e, evocando Freud, aponta o mais singular ao sujeito, o desejo: o homem deseja.


Contudo, Lacan faz a afirmação: “em todo psicanalisante há um sonho de Aristóteles”[4] É na medida em que o psicanalisante sonha que o psicanalista tem no que intervir. Tratar-se-ia de despertar o psicanalisante? Mas ele não o quer de modo algum”[5].


De que se trata o sonho de Aristóteles? Seguindo com Lacan foi possível extrair a natureza do seu sonho. Dentre vários escritos, Aristóteles deixou um tratado à respeito da alma, intitulado Peri Psyches[6]. Nele o filósofo analisa “os principais problemas que lhe dizem respeito e, segundo ele, é o princípio vital de todo e qualquer ser vivo. Ali discute a relação entre as faculdades da alma e o corpo, a relação entre a sensação e o intelecto em suas formas ativa e passiva.” Ressalte-se que a alma equivale para nós à noção de mente. Importante notar que na tradição escolástica, o intelecto ativo é o que trata de transformar as sensações em percepções, tornando-as abstratas, inteligíveis como conceitos. E na concepção clássica grega, a partir de Anaxágoras, o intelecto nous, significa o princípio da ordem do cosmo, a faculdade do pensar humano, enquanto este reflete a ordem cósmica[7]. Portanto, tudo parte do intelecto, a ênfase está no pensamento e na razão. Podemos dizer que Aristóteles sonha, o mundo sob premissas passíveis de dedução. Sonha que através da lógica chega a verdades universais, como diz, “a felicidade é o único objetivo do homem.[8]

Mas Lacan avança.


Falei do despertar. Ocorre que recentemente sonhei que o despertador tocava. Freud diz que sonhamos com o despertador quando não queremos de modo algum acordar. Nesse caso, o psicanalisante cita Aristóteles. Isso faz parte do seu material. Portanto há sempre quatro pessoas entre o psicanalisante e o psicanalista. No caso, o analisante apresenta Aristóteles. Mas o psicanalista tem por trás de si seu inconsciente, do qual se serve ocasionalmente para dar uma interpretação.[9](LACAN, 1979)


Tomando sua assertiva por partes, vamos ao despertar. Do que o sujeito não quer despertar? No que implica o sonho? Sonhamos com o despertador para continuar sonhando. Também acordamos para continuar sonhando. Despertar implica em se defrontar com o sem sentido, com o real. Para Aristóteles, tudo gira em torno do sentido. O psicanalisante, como Aristóteles, acredita na particularidade do seu sintoma ao asseverar que em todo psicanalisante há um sonho de Aristóteles, Lacan avança e diz que há quatro pessoas entre o psicanalisante e o analista. Podemos dizer de um lado o analisante e seu gozo. Do outro o analista e o inconsciente do analisante, que se faz presente pelas vias significantes, no gozo do blábláblá ou nos equívocos da língua, por onde se precipita o ponto de real do gozo.

Despertar pode implicar o abrir mão do narcisismo que alimenta o sinthoma, o se defrontar com a posição de objeto a, ou com o furo do Outro e a posição de dejeto do Outro. Mas se o despertar implica em cernir o real do gozo, temos que repetir com Lacan, que somente o amor concede ao gozo condescender ao desejo[10].

Lacan,J O sonho de Aristóteles. In Opção Lacaniana, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, 79, julho 2018, Eolia, São Paulo, p.9


[1] Freud, Sigmund, in Conferências introdutórias sobre psicanálise (1916-17, vol. XV, Obras Completas Standart Editions 1976


[2] Idem, pag.181


[3] Lacan, Jacques, idem ibidem p. 8


[4] Idem, p.8


[5] Idem, p.9


[6] PT.wikipedia.org/wiki/DA ALma


[7] HTTPS://brasilescola.vol.com.br/filosofia//substãncia-categorias-aristóteles.htm.


[8] Bezerra.J. todamatéria.com.br/aristoteles


[9] Lacan,J O sonho de Aristóteles. In Opção Lacaniana, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, 79, Julho 2018, Eolia, São Paulo, p.9


[10] Lacan, J. – Seminário Livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 197.

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