por Fátima Pinheiro - membro EBP/AMP
Sentir que a vigília é outro sonho
que sonha não sonhar e que a morte
que teme nossa carne é essa morte
de cada noite, que se chama sonho[1].
Sempre mantive com Borges uma relação de leitora voraz, e as ressonâncias que sua obra produzem em mim, como psicanalista, dizem respeito ao uso que faz o poeta da linguagem. Recentemente, adquiri em Buenos Aires a “Obra poética” e os “Contos completos”, de Jorge Luis Borges, livros que desejei ter em minha companhia durante muitos anos, e, ao ler o prólogo, escrito por Borges, de sua “Obra poética”, me deparei com a seguinte frase: “A literatura impõe sua magia por artifícios”[2]. Podemos tomar a palavra artifício, na perspectiva de Lacan, como arte, savoir-faire, que implica o impossível, algo de um fazer que escapa. Podemos dizer ser este o ponto de encontro entre a psicanálise, a poesia e o sonho: a invenção, o artifício.
Lacan nos apresenta o inconsciente como um saber inventado, uma elucubração de saber sobre lalíngua: “O inconsciente é um savoir-faire com lalíngua”. Pode-se dizer, ainda, que o inconsciente é poesia[3], no que tange à musicalidade e seus efeitos sonoros. Em duas conferências de Borges, uma em Harvard (1967), destinada à metáfora, e outra na Escola Freudiana de Buenos Aires (1980), dedicada aos sonhos (1975)[4], ele aponta a relação existente entre a linguagem poética e a invenção. Na primeira conferência, Borges diz: “Toda a literatura é feita de truques, e esses truques, com o tempo, são descobertos”[5], mostrando que as metáforas, através das imagens antitéticas, provam o caráter provisório e marcante que assume a linguagem frente à realidade. Lacan, por sua vez, revela que os truques fazem parte da estrutura do inconsciente: a metáfora, por exemplo, foi denominada por ele como “centelha criadora”[6], por surgir entre dois significantes, dos quais um substituiu o outro, assumindo seu lugar na cadeia significante, enquanto o oculto permanece presente em sua conexão (metonímica) com o resto da cadeia.
Na segunda conferência, Borges expande as questões sobre a relação entre a invenção e os sonhos, apresentadas inicialmente por ele no prólogo de seu “Livro dos Sonhos”, onde os situa como invenção espontânea do homem que dorme[7]. No sonho, segundo Borges, inventamos de modo tão rápido, que confundimos nosso pensamento com o que estamos inventando: “Sonhamos ler um livro e a verdade é que estamos inventando cada uma das palavras do livro, mas não nos damos conta, tomando-o como alheio a nós”. Borges salienta que somos – para a ordem estética e dramática que envolve o sonho –, simultaneamente: o teatro, o auditório, os atores, o argumento e as palavras que ouvimos. Entretanto, Borges ultrapassa a estética, ao nos oferecer o desafio para adentrarmos naquilo que é desconcertante na arte: o estranho, e nos mostra que a poesia, igual ao sonho, é invenção de um sujeito que assume uma nova ordem de relação simbólica com o mundo. Seus poemas nos remetem a uma região estranha, inalcançável. Os versos nos introduzem num labirinto poético que nos conduz a outros de outro poema, onde o poeta diz sentir que la vigilia es otro sueño/ que sueña no soñar y que la muerte/ que teme nuestra carne es esa muerte/ de cada noche, que se llama sueño (“Arte Poética”, 1960).
[1] Fragmento do poema “Arte Poética”, de Jorge Luis Borges, traduzido por Josely Vianna Baptista.
[2] Borges, J. L. “Obra poética”. Buenos Aires: Sudamericana, 2011, p. 11.
[3] Texto de Luis Dario Salomone: “El inconsciente es poesia”. In: “Cuando a poesia inspira a um analista”, de Gastón Cottino. Buenos Aires: Grama Ediciones, 2018.
[4] Acréscimo ao prólogo desenvolvido no seu “Libro de Sueños”, 1976.
[5] Borges, J. L. “Arte poética”. Editorial Crítica. Barcelona, 2001, p. 37-59. Traducción de Justo Navarro.
[6] Lacan, J. “A instância da letra no inconsciente”, In: “Escritos”. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1998, p. 510.
[7] Borges, J.L. “Livro dos Sonhos”. São Paulo: Difel, 1979, p.6.
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